Carta ao meu tio

Vitória Torres
2 min readMay 13, 2022

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Para o Antônio, por ter feito parte de mim

Talvez o amanhã demore para chegar, talvez o futuro seja como um desses longos trens que partem sem retorno. Talvez exista muito mais para ser descoberto por sob o manto misterioso das coisas. A tua casa repousa agora sob um fina camada de poeira. Quem vai abrir as janelas quando o sol estiver lá fora? Quem vai regar as plantas depois da tua partida? A morte se instala nas brechas e nos armários, convocando no corpo e na casa um silêncio miúdo e sutil. Mas a memória é um bicho barulhento, convoca sons e ruídos capazes de fazer viver aquilo que já não está mais aqui.

Quando lembro da tua presença logo me vem a mente aquela mangueira da estrada principal, lembra? Aquela que ficava em frente a tua casa e que os meninos subiam em busca de alguma aventura madura. Soube que ela foi derrubada por alguma ordem anônima, acho que dali já deveríamos prever que tu também logo partirias. O povoado deve estar em silêncio, os riachos, os galhos das árvores, o piar de alguma ave, tudo em suspensão, esperando pelo momento certo de relembrar a tua doçura, teu riso e teus lamentos.

Sabe, tio, cada vez que um de nós vai esmorecendo, sinto que uma parte daquela terra também se perde. As memórias da infância, os doces caseiros, o riso dos vizinhos na porta, longo antes do entardecer. Tudo indo embora com a tua partida. Com tua ida vão se embora as brincadeiras, as pilhérias, os serões noturnos, a cantoria, os tatus que tu caçavas ao meio dia, a simplicidade de ir em nossa porta pedir qualquer farinha para comer no almoço.

Contigo foi embora também um pedaço de mim

Sei que terei de conviver com tua ausência, evocando essas memórias como solução. É com o tempo que negociarei a partir de agora, pedindo a ele para ser menos rígido com a minha dor, quem sabe se as horas não passem rápidas o suficiente para essa ferida doer menos, quem sabe se daqui a pouco não nos encontraremos em um estado mais bonito, tu livre da morte e eu da saudade. Quem sabe, tio. Por enquanto, no lugar dessa ausência, cantarei em memória aquilo que sobrou de ti.

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Vitória Torres

Escritora de linhas frágeis. Guiada pelo poema-palavra